sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O que não era

(Ouve-se uma gravação com nomes de diversas profissões continuamente)
Não me lembro como cheguei até aqui. (Pausa)
Também não sei quanto tempo faz que estou aqui. (Pausa)
Muito menos onde é aqui.
A única coisa de que me lembro é que vim sozinho. Mas como vim? De onde vim? Onde estava antes daqui? Estaria mesmo em algum lugar? E aqui é um lugar? Eu era alguma coisa? O que fazia antes?
Ai, que estúpido! Acho que não estou mais vivo! È só isso!Sempre ouvi falar nessa estultice de almas que vagam sem saber onde estão, nem que são e... E quando vivas, sabiam quem eram? O que queriam? Eu sabia o que queria? Sabia o que não queria, o que não queria vir a ser. Parece coerente, agora sei onde não estou. Num corpo. E muito menos no meu conhecido parceiro. Mas, paradoxalmente, continuo sentindo a mesma vida pulsando dentro de mim. É, a vida não depende de invólucros.
Ok, não estou vivo! Mas como perdi a vida? Se é que se pode perdê-la. Não sinto que sofri alguma perda, alguma derrota. Não, definitivamente, eu não me entreguei. Sempre me estimulei pela competição, não iria jogar a toalha. E além do mais, tenho horror a corte, machucado, sangue. Disso me lembro bem. Um trauma mesmo e acho que se tivesse morrido assim tinha me currado. E nesse exato momento, só de imaginar um filamento sequer de sangue, já sinto uma tontura, um mal estar, que agora sei que não era meu corpo que sentia.
Também não morri muito jovem, pois lembro do meu pai me levando leite de vaca fresquinho na cama, com o chocolate borbulhando na espuma; lembro das cores vibrantes do acrílico dos meus jogadores do futebol de botão; do meu vira latas me acompanhando e assistindo, comportado da arquibancada, meu treino de basquete; do meu primeiro beijo que a embriaguez da irmã mais velha do meu melhor amigo me brindou; da embriaguez de todos os sentidos no carnaval de Olinda; de uma gruta de granito esculpida pela água no interior de uma caverna...
Mas não tenho nenhuma lembrança da idade ter-me trazido sabedoria. Será que o Alzhaimer me roubou o saber e o sabor da vida? Talvez...
Não tive um funeral com honras de estado, mas também não acho que tenha ido pra uma vala comum.
Também acho que não morri de desgosto, saudade, tristeza, depressão... Nunca tive inclinação pra tal. Sempre que tentei reter alguma melancolia para tentar entender algum movimento interior meu, fui resgatado por coisas belas e singelas. Um sorriso apaziguador, uma forma inesperadamente harmônica, um gesto de atenção...
Meu Deus, será que eu era brega assim mesmo? E esse ‘Meu Deus’ tem eco em mim ou é um vício de linguagem? E alma tem vício de linguagem? Será que eu tinha alguma idéia de Deus? E será que eu tinha alguma coisa? Ou era alguma coisa? Será que eu era eu? Eu fui eu? Ah, me lembrei de umas pessoas dizendo que eu tinha sido bom. Mas será que falavam por causa deste estado do ser ou do próprio ser naquele estado?
Nossa, como me expresso de maneira pomposa! Se me expressava desse jeito não me lembro se assim conseguia me comunicar. Será que consigo descobrir algo de mim justamente através dessa maneira de me expressar? Será que o fato de pensar assim já não é um indício de que tinha alguma formação, alguma informação, alguma deformação? Ou será que quando se chega aqui zera tudo? Ou potencializa tudo? E fica todo mundo letrado? Letrado e não numerado? Será que ficamos todos sábios com os celestiais bônus por termos cruzado com galhardia os umbrais da vida?
Ai meu deus, de novo! Tô começando a pensar que eu era escritor de auto-ajuda. Ou pior, letrista de música gospel.
(Pausa. Sobe o volume da gravação e ele vai dizendo ‘Não’ após cada nome de profissão.)
Isso! Não era cantor. Não era músico. Não era médico, nem médium. Não era cientista, nem cientologista. Não era poeta, nem profeta, nem protético. Não era juiz, nem jagunço. Não era cavaleiro, nem coveiro. Não era psicanalista, nem pecuarista. Não era catador, nem lutador. Não era mímico, nem químico. Não físico, não fisiatra. Não bombeiro, não babá. Não era.
Não sou mais o que não era.
Não sou.
Tô morto! Assim, seco! Acho que acabei de morrer como vivi, de maneira direta.
Não ouvi as pessoas falando comigo e eu, angustiado, sem poder responder.
Não flutuei, incrédulo, sobre meu corpo estendido sobre um leito.
Não atravessei nenhum túnel.
Não vi uma seqüência de cenas emblemáticas da minha vida como num filme numa velocidade estonteante.
Não encontrei meus familiares e entes queridos me esperando calorosamente.
Não fui julgado por nenhuma das minhas inúmeras faltas relevantes.
Não tive minha fagulha divina incorporada ao grande sol central.
Não descansei, muito menos em paz.
Não senti nenhuma paz beatífica invadindo meu ser.
Não fiquei aliviado de nenhum peso, físico ou metafísico.
Não tinha sete mulheres me esperando, quiçá virgens.
Não tive uma paternal acolhida nos braços de Tupã.
Não me sinto estafado como após uma grande viagem.
Não fui ofuscado por nenhuma luz, nem virei purpurina.
Não recebi as chaves de São Pedro.
Não vim para uma melhor.
Simplesmente findei. Como finda uma samambaia, um carrapato, um peixe decorativo ou um bicho do pé.
Agora sei, a grande apoteose da experiência mística não é morrer.

Beto
Amorim

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