quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Morte Minha

Estou passeando no Central Park, numa tarde de outono, dia 22 de Novembro de 2044. Vejo um cavalo atrelado a uma charrete. Belo animal, sempre gostei de cavalos. É preto, tem uma crina ondulado que cai pelo lado esquerdo do pescoço. Nos olhos traz uma luz de fúria contida, como um guerreiro amarrado a uma cadeira. Como um tigre preso em uma armadilha. Como um garanhão atrelado a uma carroça. Não há ninguém em volta, que estranho. O cavalo relincha à minha aproximação, e faz um aceno de cabeça, meio pra esquerda. Olho-o nos olhos, sentindo-me um tanto cúmplice da sua situação de servo. Afago-lhe a testa, o nariz, o pescoço. “Shhhh, cavalo... Tudo bem, ta de boa, tamo junto.” Ele é bonzinho, já virou brother. Noto o pôr-do-sol, que se aproxima, através do reflexo daqueles grandes olhos negros. Lembro do Calango, meu velho pangaré dócil como um cágado. Súbito, alguém atrás de mim, encosta algo pontudo e duro no meu rim direito. “This is a robbery, old man. Gimme all ya got.” Respondo num tom calmo, como em todas as dezenas de vezes que fui assaltado. “Ok, no problem. Relax. I Will now turn around and give you what you want.” Me viro lentamente. “I will reach for my wallet, wich is on the left pocket of my coat.”, e enfio a mão no casaco pra pegar a carteira. O cara bruscamente enfia a mão no mesmo bolso, o que assusta o cavalo, que empina furiosamente e golpeia o ar com as patas da frente, que nem um boxeador meio médio ligeiro. Sinto-me leve. Minha artrite não ta doendo? Minha coxo-femural não ta doendo. Ok, já entendi. Tô fora do corpo. Tô até me vendo. Oloco, o ladrão ta tentando me ressucitar! Desencana, brother, olha rombo que a ferradura abriu na minha cabeça... Peraí, mas eu morri ou não?

Ai, caralho!!

Luz, estrelas, escolha, choque elétrico, escuridão, estou crescendo, água morna, estou morrendo, movimento, barulho, pulsação, didjeridoo, tambura, água correndo, estou crescendo, membrana grossa, está ficando pequeno, me tira daqui, frio, luz, muita luz, estou queimando, deixa eu voltar, que porra é essa, ta seco, gravidade, não me bate, eu respiro, que dor, me larga, quem é você, ahh... mãe!

Banho, manto, peito, leite, amor, branco, sono, escuro, luz, despertar, mãos, dedos, pernas, força, leite, colo, peito, braços, balanço, gorfo, sono, assadura, saudade, amor, não me deixa aqui, obrigado.

Chão, quantas pernas, como eles ficam assim, não dá pra ver a cara de ninguém, não alcanço, vou alcançar, cara no chão, que porrada, de novo, opa! Ah, nem é tão difícil.

Angústia, ninguém me entende, eu entendo mais ou menos o que eles querem, credo que porra difícil, mamama, mama. Papa? Ah, tá... André. Quero isso, quero aquilo, água, peito, mamadeira, doce de leite, mingau de aveia, de maisena, neston, farinha láctea, leite ninho, Sustagen. Dá, tó, meu, seu, dela, larga, caiu, cadê, achou, quantos, onde, quem, eu, você, ele, ela, a gente, auau, cachorro, miau, gato, carro, avião, gande, pequeno, sim, não, livro, cadeira, giz de cera, papel, lápis, caneta, papagaio, moto! Moto peta gandona!

Ninguém gosta mais de mim, é a MINHA mãe! Pai, pra onde você vai? Mãe, cadê o papai? Tava com saudade, pai, não vai mais embora. Não foi, ta sempre aqui agora. Escola, você ta lendo, meu amor! Aula pra superdotado, coisa de idiota, me deixa ser normal, outra escola, outra casa, não me chama de mulherzinho, dou porrada na cara. Não pisa no meu pé, chuto no saco. Gisele, olha pra mim, a Gisele não é loira azeda, eu gosto dela! Outra escola, sou mais novo, mas sou mais inteligente, me encheu o saco dou porrada, sou fodão. Muda de cidade, muda de escola, de novo tudo, mais porrada, mais novo, mais inteligente, mais um monte de coisa, esse muleque é cheio que querer. Oloco, aqui tem um padrão. Karatê, sensei, respeito, não precisa bater em ninguém, você é melhor, eu sou melhor, não preciso bater em ninguém.

Calaboca Luiza, sai Pedro, porra mãe, merda pai, caralho professora, vai todo mundo tomar no cu!
Só a minha guitarra me entende, nem a minha guitarra me entende, ninguém
me entende, eu não me entendo, preciso me entender com alguém, olha tem gente que me entende um pouco, capaz que eles se entendem mais do que eu me entendo, amizade, que coisa foda, não vou perder isso nunca, quéisso, mano, pode contar comigo.

Mulher, preciso de uma, essa aí! Não me quer como, que bosta, que que eu tenho de errado, caralho, me fodi, me fodeu, vai se foder. Foda-se! Essa não, essa sim, essa não, essa sim, ta achei uma. Não, não achei, não me quer, mais uma, vadia. Essa sim, essa não. Essa sim, mas não me quer. Não me quer como? Ah... Aqui tem um padrão... Sussa.

Arte, pode ser um caminho, me reconheço na dos outros, me conheço na minha, crio, sou recriado, malcriado e bem educado. Estudar, estudar a sério, tenho talento, sou fodão. Ah, não... Outro padrão. Arte, arte, arte, respira música, inspira dor e expira arte, porra maluco, isso aí é dança? Achei que dança era chato, tipo balé clássico. Caralho, que merda, tem um veículo melhor que o meu, quero esse trem aí, vou juntar, vou fazer tudo, dança, música, faço os dois, caralho, vou fazer teatro, escultura, tocar baixo, piano, contato, escrever um roteiro, fazer um filme.

Você não pode fazer tudo, André. Posso sim, vou fazer, to fazendo, que se foda odeio regras, não me encaixo nos padrões. Dá uma olhada em volta, você ta negando todos os padrões. Porra de buceta, outro padrão... Tá.

Budismo, meditação, sua mente não é você, você é quem criou a sua personalidade, não se prenda a ela, a ponte com os outros que você sempre sentiu e sempre ignorou é real, vai além de qualquer padrão, transcende seu ego, seu mundinho, o budismo é parte do caminho, a meditação é parte do caminho, a arte é parte do seu caminho, a ponte com os outros é um caminho. Caminho sem forma, não se prenda a regras, não há regras para se prender. Aaaahhhnnn. Saquei.

Tá pronto? Quanto tempo! Lembra de mim? Claro que lembra, claro que lembro. É por aí, você ta no caminho, tropeçou, mas ta achando, agora é a hora, o momento fora do tempo, você vislumbrou isso várias vezes, algumas sem querer, outras procurando, cada vez mais perto mas nunca lá. É agora. Desapega, não tem regras aqui. Você é. Você não é. Não é um fim, nem um começo, é só mais um momento fora do tempo, um lugar fora do espaço, você sempre esteve aqui, e aqui não é nunca. Aqui é sempre. É agora, mas em lugar nenhum.

Que bom, não foi difícil.

André
Graça

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