PAN!
PAN! [Música distorcida, estridente e irritante]
Estado Zero. De repente se inicia uma inundação de calor muito intensa. Uma ardente crescente e muito forte. Isolo minha cabeça e tenho uma profunda sensação de mergulho denso e pesado em um mar de tinta infinito. Ploft plooff. E que de tão infinito se fecha, e concentra todas suas energias dentro da minha cabeça. Que louco! Esse pedaço de corpo aqui em cima virou um microcosmo e ahhhh dói! Dor de bigorna, de líquido-lama, de densidade mil. Uma dor gorda e aguda. A cor não é vermelha nem preta, mas branca! Branco-ai, branco-lâmina, branco-desliga-essa-luz-que-a-dor-de-cabeça-não-suporta-mais. Sons, muitos sons, ruídos, música alta e incompreensível. Mistura de sons dinâmicos, lentos, lineares ou não. Tudo ao mesmo tempo de cima pra baixo de baixo pro lado pra cima pra trás do lado pro chão tontura pra frente que tromba do meio e dói pro lado pra trás que cai e cai de novo e levanta e cai. Meu corpo não entende mais nada e se libera da compreensão, se solta e esfria o sentido. O primeiro sentido, o tato.
Cheiro de pólvora. Eu já vesga de tanta tontura sou invadida por um estranho e vertiginoso aguçamento de sentidos, pelo menos dos que sobraram. Talvez uma tentativa instintiva de agarrar com os dentes os tais que ainda tenho. Engulo uma gordurosa porção de sangue e saboreio um gosto vivo como nunca havia experimentado. Meu cérebro está a milhão e cada enérgica referência externa, ainda singelamente observada, é refletida feito um raio de choque radiante diretamente pra dentro da minha cabeça. Tudo, tudo confusamente e simultaneamente vivido. Minha respiração é ofegante e cada pedaço de ar inspirado é como se queimasse os meus pulmões de vida. Esse resto de vida perturbante.
Os sons que restaram vão gradualmente se distanciando, a dor de cabeça amenizando, longe, loooooonge... Aos poucos tanta informação sensorial vai entrando em uma velha vibração, e eu em outra. Mas eu quem? Se eu não to mais ali, quem tá lá? Indo pra onde? Como assim minha mente não tá mais falando, e pior, nem tampouco sendo falada?! Por um instante sinto uma paz desconhecida, ainda encoberta por receio e estranhamento. Quero voltar. Ó eu ali! Eita, mas eu to aqui! Eu sou aquilo ali ó! Meu corpo! Eu! Quero voltar!! Mas, hm, é uma sensação tão gostosa. É como se voasse... E de tanto medo desse incógnito acabo transformando receio em aceitação, em permissão. E vou. Indo, iiindo... O gerúndio parece eterno e o estado atemporal. Tudo acontece agora, não há passado, nem futuro. Enquanto vou, a máscara fica. Me projeto pra fora enquanto desmascaro. Uma máscara? Muitas? Quais são as faces que vestimos durante a vida? De medo, alegria, desconfiança, de bravo, esnobe, de careta, de choro, de susto, de vítima, de sóbria... de quem? Uma, duas, todas lá ficaram. Se Machado de Assis experenciasse isso, se sentiria incompleto, sem metade da laranja. No entanto eu não. Ao contrário, me sinto mais plena do que nunca. Achei estar perdendo minha consciência, mas estou me desligando da mente, isso sim. E a consciência está despertando. Seria o ego que ficou lá embaixo? Nossa! Morrendo pra vida! Sem mais filosofadas permaneço sendo. Estou indo, indo...
[ssshhh; som da circulação; gradativo]
Fora do meu corpo e ainda aqui, me sinto plumante, flutuante. Uma mistura de malemolência-capoeira-amortecida com o corpo que é pena, onde não há mais gravidade, e que não tem mais forma. Não é mais algo, algum conceito, simplesmente é. Agora vendo inerte o outro ali embaixo, reconheço esse novo corpo... sinto. Não penso mais. Julgamentos não passam mais pela minha mente e a interiorização se recheia de paz e equilíbrio. Silêncio. Me sinto grande, tenho uma sensação do todo. Percebo. Parece que tenho várias camadas de energia que me expandem. Alegria! Sorrio e cada instante é docemente eternizado. Alegria de ser. Não ser isso ou aquilo, mas ser. Estar. De súbito me sinto sugada pra algum lugar que não sei, sou atraída pelo peito e o famoso túnel-pré-morte surge, mas nada de escuridão. Meu túnel é colorido... Êee! Um mergulho a um espaço-infância! Será que eu to nascendo de novo? Que divertido, vou querer brincar disso de novo depois.
Imagens, muitas imagens. Assisto repentinamente minha vida toda até então. Muita muita informação! Não me sinto confusa, mas as imagens são muitas. Começa lento e vai ficando rápido rápido rápido. Uma música de fundo me conforta e ajuda a compor tanta invasão de pequenos passados. A cada fato novo que se desenrola nesse cinema fantástico, uma voz me pergunta: Valeu à pena? Não há censura nessa voz, apenas uma calma infinita. A voz tampouco fala, mas é inteiramente sentida dentro de mim. Antes mesmo que pudesse refletir a respeito, uma imensa bola límpida é criada em minha volta. Me vejo dentro de uma bolha de espelho! Um espelho de perspectiva cármica que não reflete minha forma, mas tudo o que fui, e, ainda sem julgamento, apenas pra reflexão. Inexplicável sensação essa. Pela primeira vez entendo tudo o que fiz em vida de camarote. A minha visão de fora, mas ainda sendo eu ali dentro.
O espelho se desfaz. Se a consciência fosse uma cebola, a última descascada seria essa. Já mordi, mastiguei, experimentei, cuspi e chorei ela. O que restou foi a essência e basta. Amor. As cores de outrora radiantes e hipnotizantes se amenizam e o cenário agora se pincela de cores suaves. Sempre cores, mas nenhuma agride mais, elas acolhem e indicam um caminho. Se tivesse com meu corpo físico de volta, seria como se estivesse pisando descalça na grama verde e fresca do recém-nascer-do-sol. Paz infinita. Me deparo com algo que simboliza o eterno-e-agora. Não sei bem o que, uma porta, uma névoa, um imenso mar... Como uma encruzilhada, esse portal assinala a fronteira entre passado e futuro. Minha mente pesa por uma última vez e o pensamento que me ocorre é que estamos constantemente condicionados a ‘sermos pensados’ pelo inconsciente a não ser que observemos de fato. Além disso, tenho uma grandiosa compreensão de que o cenário da nossa caminhada em vida nada mais é do que a conseqüência de cada passo que damos. E cada passo lá reflete radiantemente aqui, nesse mundo não-mundano. Vida após vida.
Patrícia Bergantin
Estado Zero. De repente se inicia uma inundação de calor muito intensa. Uma ardente crescente e muito forte. Isolo minha cabeça e tenho uma profunda sensação de mergulho denso e pesado em um mar de tinta infinito. Ploft plooff. E que de tão infinito se fecha, e concentra todas suas energias dentro da minha cabeça. Que louco! Esse pedaço de corpo aqui em cima virou um microcosmo e ahhhh dói! Dor de bigorna, de líquido-lama, de densidade mil. Uma dor gorda e aguda. A cor não é vermelha nem preta, mas branca! Branco-ai, branco-lâmina, branco-desliga-essa-luz-que-a-dor-de-cabeça-não-suporta-mais. Sons, muitos sons, ruídos, música alta e incompreensível. Mistura de sons dinâmicos, lentos, lineares ou não. Tudo ao mesmo tempo de cima pra baixo de baixo pro lado pra cima pra trás do lado pro chão tontura pra frente que tromba do meio e dói pro lado pra trás que cai e cai de novo e levanta e cai. Meu corpo não entende mais nada e se libera da compreensão, se solta e esfria o sentido. O primeiro sentido, o tato.
Cheiro de pólvora. Eu já vesga de tanta tontura sou invadida por um estranho e vertiginoso aguçamento de sentidos, pelo menos dos que sobraram. Talvez uma tentativa instintiva de agarrar com os dentes os tais que ainda tenho. Engulo uma gordurosa porção de sangue e saboreio um gosto vivo como nunca havia experimentado. Meu cérebro está a milhão e cada enérgica referência externa, ainda singelamente observada, é refletida feito um raio de choque radiante diretamente pra dentro da minha cabeça. Tudo, tudo confusamente e simultaneamente vivido. Minha respiração é ofegante e cada pedaço de ar inspirado é como se queimasse os meus pulmões de vida. Esse resto de vida perturbante.
Os sons que restaram vão gradualmente se distanciando, a dor de cabeça amenizando, longe, loooooonge... Aos poucos tanta informação sensorial vai entrando em uma velha vibração, e eu em outra. Mas eu quem? Se eu não to mais ali, quem tá lá? Indo pra onde? Como assim minha mente não tá mais falando, e pior, nem tampouco sendo falada?! Por um instante sinto uma paz desconhecida, ainda encoberta por receio e estranhamento. Quero voltar. Ó eu ali! Eita, mas eu to aqui! Eu sou aquilo ali ó! Meu corpo! Eu! Quero voltar!! Mas, hm, é uma sensação tão gostosa. É como se voasse... E de tanto medo desse incógnito acabo transformando receio em aceitação, em permissão. E vou. Indo, iiindo... O gerúndio parece eterno e o estado atemporal. Tudo acontece agora, não há passado, nem futuro. Enquanto vou, a máscara fica. Me projeto pra fora enquanto desmascaro. Uma máscara? Muitas? Quais são as faces que vestimos durante a vida? De medo, alegria, desconfiança, de bravo, esnobe, de careta, de choro, de susto, de vítima, de sóbria... de quem? Uma, duas, todas lá ficaram. Se Machado de Assis experenciasse isso, se sentiria incompleto, sem metade da laranja. No entanto eu não. Ao contrário, me sinto mais plena do que nunca. Achei estar perdendo minha consciência, mas estou me desligando da mente, isso sim. E a consciência está despertando. Seria o ego que ficou lá embaixo? Nossa! Morrendo pra vida! Sem mais filosofadas permaneço sendo. Estou indo, indo...
[ssshhh; som da circulação; gradativo]
Fora do meu corpo e ainda aqui, me sinto plumante, flutuante. Uma mistura de malemolência-capoeira-amortecida com o corpo que é pena, onde não há mais gravidade, e que não tem mais forma. Não é mais algo, algum conceito, simplesmente é. Agora vendo inerte o outro ali embaixo, reconheço esse novo corpo... sinto. Não penso mais. Julgamentos não passam mais pela minha mente e a interiorização se recheia de paz e equilíbrio. Silêncio. Me sinto grande, tenho uma sensação do todo. Percebo. Parece que tenho várias camadas de energia que me expandem. Alegria! Sorrio e cada instante é docemente eternizado. Alegria de ser. Não ser isso ou aquilo, mas ser. Estar. De súbito me sinto sugada pra algum lugar que não sei, sou atraída pelo peito e o famoso túnel-pré-morte surge, mas nada de escuridão. Meu túnel é colorido... Êee! Um mergulho a um espaço-infância! Será que eu to nascendo de novo? Que divertido, vou querer brincar disso de novo depois.
Imagens, muitas imagens. Assisto repentinamente minha vida toda até então. Muita muita informação! Não me sinto confusa, mas as imagens são muitas. Começa lento e vai ficando rápido rápido rápido. Uma música de fundo me conforta e ajuda a compor tanta invasão de pequenos passados. A cada fato novo que se desenrola nesse cinema fantástico, uma voz me pergunta: Valeu à pena? Não há censura nessa voz, apenas uma calma infinita. A voz tampouco fala, mas é inteiramente sentida dentro de mim. Antes mesmo que pudesse refletir a respeito, uma imensa bola límpida é criada em minha volta. Me vejo dentro de uma bolha de espelho! Um espelho de perspectiva cármica que não reflete minha forma, mas tudo o que fui, e, ainda sem julgamento, apenas pra reflexão. Inexplicável sensação essa. Pela primeira vez entendo tudo o que fiz em vida de camarote. A minha visão de fora, mas ainda sendo eu ali dentro.
O espelho se desfaz. Se a consciência fosse uma cebola, a última descascada seria essa. Já mordi, mastiguei, experimentei, cuspi e chorei ela. O que restou foi a essência e basta. Amor. As cores de outrora radiantes e hipnotizantes se amenizam e o cenário agora se pincela de cores suaves. Sempre cores, mas nenhuma agride mais, elas acolhem e indicam um caminho. Se tivesse com meu corpo físico de volta, seria como se estivesse pisando descalça na grama verde e fresca do recém-nascer-do-sol. Paz infinita. Me deparo com algo que simboliza o eterno-e-agora. Não sei bem o que, uma porta, uma névoa, um imenso mar... Como uma encruzilhada, esse portal assinala a fronteira entre passado e futuro. Minha mente pesa por uma última vez e o pensamento que me ocorre é que estamos constantemente condicionados a ‘sermos pensados’ pelo inconsciente a não ser que observemos de fato. Além disso, tenho uma grandiosa compreensão de que o cenário da nossa caminhada em vida nada mais é do que a conseqüência de cada passo que damos. E cada passo lá reflete radiantemente aqui, nesse mundo não-mundano. Vida após vida.
Patrícia Bergantin
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